A Lei Maria da Penha, sancionada em 2006, é um marco histórico no combate à violência doméstica e familiar contra a mulher no Brasil. Originada da luta de Maria da Penha Maia Fernandes, que sofreu duas tentativas de feminicídio por parte de seu marido, essa legislação visa proporcionar proteção ampla e integral ao gênero feminino, abarcando diversas formas de violência e reconhecendo sua vulnerabilidade específica no contexto doméstico e familiar. Neste artigo, buscamos compreender a possibilidade de o artigo 3º da referida lei apresentar um rol exemplificativo. Com isso, surgiria a possibilidade de proteger a mulher que sofre violência fora do ambiente doméstico.
Abrangência da Lei Maria da Penha
A abrangência da Lei Maria da Penha vai além da violência cometida por homens contra mulheres em relações conjugais. Cabe ressaltar que a proteção legal se aplica ao gênero feminino, abrangendo assim as mulheres transexuais e transgêneros. Em termos gerais, qualquer mulher que esteja sendo violentada no contexto doméstico e familiar pode fazer uso desse instrumento legal, incluindo os casos de mulheres homossexuais que vivem em situação de violência com sua companheira.
A legislação também se aplica a outras formas de relacionamento íntimo e familiar, como ilustrado por diversos casos julgados pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ). Um exemplo notável é a aplicação da lei em uma situação de violência cometida por neto contra avó e filha contra a mãe, onde a vulnerabilidade da vítima e a necessidade de proteção foram reconhecidas, demonstrando que a proteção se estende a diferentes configurações familiares.
A jurisprudência consolidada no STJ indica que a relação entre agressor e vítima deve ser analisada no caso concreto, sendo desnecessária a coabitação para a aplicação da Lei Maria da Penha. Esse entendimento foi reafirmado pela Súmula 600, que reconhece a aplicação da lei em situações em que há relação íntima de afeto, mesmo sem coabitação. Um caso emblemático que ilustra essa interpretação é o julgamento da Sexta Turma do STJ confirmou a condenação de um homem por atentado violento ao pudor contra a empregada doméstica da casa de sua avó. O ministro Sebastião Reis Júnior destacou que o crime foi cometido em ambiente doméstico, enquadrando-se na hipótese do artigo 5º, inciso I, da Lei Maria da Penha.
Apesar da clareza na aplicação da Lei Maria da Penha, há opiniões divergentes sobre a extensão de sua aplicabilidade. Ávila e Bianchini, que participaram da redação do anteprojeto da Lei nº 14.550/2023, defendem que a aplicação da lei deve ocorrer sempre que houver violência contra a mulher em um contexto de coabitação, relação íntima de afeto ou familiar. Eles argumentam que essa interpretação está alinhada com o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero, que reconhece a violência doméstica como uma manifestação da hierarquia de poder baseada no gênero.
Entretanto, a Lei Maria da Penha também tem sido aplicada no ambiente de trabalho, onde a proteção das mulheres vítimas de violência doméstica ou familiar tem repercussões importantes. Por exemplo, o artigo 9º, § 2º, prevê a manutenção do vínculo trabalhista por até seis meses quando necessário o afastamento do local de trabalho por determinação judicial.
Para as empregadas domésticas, a Lei Complementar 150/2015 prevê que a prática de violência doméstica ou familiar pelo empregador é motivo de justa causa para a rescisão do contrato de trabalho. Com isso, a jurisprudência tem confirmado a aplicação da Lei Maria da Penha em casos de violência de gênero praticada no âmbito do trabalho doméstico, reconhecendo a vulnerabilidade das empregadas e a necessidade de proteção mesmo na ausência de coabitação contínua entre agressor e vítima.
Interpretação Extensiva
A violência contra a mulher é um problema estrutural, originado de uma construção histórico-cultural que, de maneira extremamente violenta, incutiu socialmente a ideia da supremacia do homem sobre a mulher. Após o fim da Idade Média, o espaço da mulher foi restrito ao ambiente doméstico, para atividades não remuneradas ou pouco valorizadas socialmente, vinculadas a satisfazer as necessidades e determinações masculinas, especialmente no lar. Frederici ilustra bem essa situação ao apontar a perda de espaço das mulheres em todas as áreas da vida social, entre os séculos XVI e XVIII.
Durante esse período, houve uma constante erosão dos direitos das mulheres. Na França, elas perderam o direito de fazer contratos ou de se representar nos tribunais, sendo declaradas legalmente “imbecis”. Na Itália, começaram a aparecer menos frequentemente nos tribunais para denunciar abusos. Na Alemanha, quando uma mulher de classe média ficava viúva, era comum a designação de um tutor para administrar seus negócios. Em suma, além da desvalorização econômica e social, as mulheres experimentaram um processo de infantilização.
Dutra destaca que, até 2022, o Superior Tribunal de Justiça prevalecia a posição de que a motivação de gênero na violência praticada em contexto de violência doméstica era relativa. Mas, com o voto da Relatora Ministra Nancy Andrighi, sedimentou-se o entendimento da presunção absoluta da motivação de gênero. Em seu voto, a Ministra destaca que a demonstração específica da subjugação feminina é desnecessária para a aplicação do sistema protetivo da Lei Maria da Penha, pois a organização social brasileira ainda é fundada em um sistema hierárquico de poder baseado no gênero. Tal decisão deu ensejo à revisão dos Enunciados nº 5 e 6 da edição nº 41 do Jurisprudências em Teses do STJ, que passaram a afirmar que a hipossuficiência, vulnerabilidade ou fragilidade da mulher são presumidas nas violências contra elas praticadas nas circunstâncias do art. 5º da Lei nº 11.340/2006.
A assimetria de poder entre homens e mulheres é reforçada pela ideologia patriarcal, que vê mulheres como seres inferiores aos homens. Mulheres são perseguidas e maltratadas pelo fato de serem mulheres. O feminicídio é uma prova incontestável disso. Conclui-se, portanto, que, quando se trata de agressora do gênero feminino, a presunção de motivação de gênero absoluta descrita no art. 40-A deve ser afastada, sendo necessário investigar a causa ou motivação dos atos de agressão.
Ainda que tecnicamente a Lei Maria da Penha não se circunscreva às violências de gênero praticadas fora do ambiente doméstico, nada impede que ela seja norteadora das medidas a serem adotadas pelas empresas para prevenir e coibir a violência contra as mulheres no local de trabalho. A violência é uma expressão da discriminação, e os efeitos desse fenômeno no mundo do trabalho não são diferentes.
Compreender a dinâmica da violência de gênero permite reconhecer que, assim como ocorre no espaço doméstico e familiar, no ambiente de trabalho as violências estão amparadas em papéis de domínio e submissão. Mulheres também são violentadas no trabalho porque são compreendidas como seres inferiores em direitos e oportunidades. Relacionamentos de trabalho podem ser abusivos, assim como relacionamentos familiares e afetivos, porque todas as interações sociais entre homens e mulheres são permeadas por clivagens de gênero.
Compreender os assédios moral e sexual nas relações de trabalho contra a mulher como atos de violência de gênero, nos termos da referida lei, permite enfrentar o problema com a gravidade e importância que exige. O assédio sexual no trabalho, além de poder configurar crime, é um exemplo típico de violência sexual nos termos da Lei Maria da Penha.
Quanto à violência praticada na própria relação de trabalho pelo empregador, Carolina Burlamaqui destaca que a Lei Complementar 150/2015, em seu art. 27, § único, elenca entre as hipóteses de rescisão indireta do contrato de trabalho a prática pelo empregador de qualquer das formas de violência doméstica ou familiar contra mulheres previstas na Lei Maria da Penha. Com base na Lei Complementar e na doutrina, a juíza concluiu que empregadores podem ser autores de agressões com motivação de gênero na relação de trabalho doméstico, sobretudo porque a unidade doméstica prevista no art. 5º da Lei Maria da Penha é todo espaço de convivência permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar. Nessas situações, a instrução processual deve considerar as peculiaridades da legislação especial, inclusive a identificação da motivação de gênero.
Em relação às demais relações de trabalho, apesar de as mulheres serem constantemente vítimas de discriminação e violência de gênero, a aplicação da Lei Maria da Penha enfrenta o obstáculo de especificar o espaço em que pode ocorrer a violência, que é o âmbito da unidade doméstica, da família e de qualquer relação íntima de afeto. Essa limitação, assim, impede que a proteção à mulher seja conferida em todos os âmbitos de sua vida. Não se esquecendo que nem todas elas enfrentam violências apenas em suas residências, mas que em sua maioria de permeiam pela percepção de gênero.
Conclusão
A Lei Maria da Penha é uma peça fundamental na defesa dos direitos das mulheres no Brasil, proporcionando uma rede de proteção abrangente contra a violência doméstica e familiar. Contudo, ao restringir-se terminologicamente ao “doméstico”, a lei acaba por subestimar a real extensão da violência de gênero, que permeia diversos âmbitos da vida das mulheres, incluindo o ambiente de trabalho. É imprescindível uma reflexão crítica sobre a nomenclatura “violência doméstica”. O termo limita a compreensão e a aplicabilidade da lei, sugerindo que a violência contra a mulher ocorre predominantemente dentro do espaço doméstico. Na realidade, a violência de gênero manifesta-se em múltiplos contextos, como nas relações de trabalho, nas instituições educacionais e em espaços públicos. A manutenção dessa terminologia pode invisibilizar as situações de violência que ocorrem fora do lar, prejudicando a proteção integral e efetiva das mulheres.
A evolução da jurisprudência e a introdução de novas legislações, como a Lei nº 14.550/2023, reforçam a necessidade de uma abordagem inclusiva e sensível ao gênero para garantir a efetiva proteção das mulheres contra a violência. Entretanto, é vital que essa evolução também se reflita na revisão e atualização dos termos utilizados. Uma possível mudança de nomenclatura para “violência de gênero” ou “violência contra a mulher” poderia abranger melhor a variedade de contextos em que essa violência ocorre, promovendo uma proteção mais ampla e eficaz.
Ainda que a Lei Maria da Penha tenha sido aplicada em diversos contextos, incluindo o ambiente de trabalho, a linguagem utilizada pela lei precisa evoluir para acompanhar essas práticas judiciais. O reconhecimento de que a violência de gênero transcende o espaço doméstico é fundamental para garantir que todas as formas de violência sejam adequadamente enfrentadas. Portanto, uma mudança na nomenclatura e uma ampliação conceitual são essenciais para que a Lei Maria da Penha continue a ser um instrumento poderoso na luta contra a violência de gênero no Brasil, refletindo mais fielmente a realidade das diversas formas de violência enfrentadas pelas mulheres em nossa sociedade.
Short Bio:
Ricardo Rodolfo Rios Bezerra
Sócio Fundador do Vieira Rios Advogados, profissional graduado em Direito no IDP, pós-graduação em Direito Penal e Processo Penal no IDP, pós-graduado em anticorrupção e compliance no IDP e Mestrando, como aluno especial, na UnB.
Iasmin Barros
Advogada Associada no Vieira Rios Advogados, Graduada em Direito pelo CEUB, tem vasta experiência em Direito Penal e em Direito de Família. Participou de diversos cursos de atualização e aperfeiçoamento na área criminal.
REFERÊNCIAS
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