No dia 15 de junho, em uma festa junina escolar no Distrito Federal, um pai subiu ao palco e empurrou uma criança de quatro anos que dançava durante uma apresentação. A justificativa apresentada foi de que a criança teria cometido bullying contra seu filho. Em seguida, outro adulto reagiu agredindo fisicamente o primeiro, alegando indignação com a violência contra o menor. O episódio levantou intensos debates públicos, mas exige uma análise técnico-jurídica sobre três pontos: a inexistência de legítima defesa, a impropriedade da retaliação posterior e a inaplicabilidade da Lei Henry Borel ao caso.
1. A ausência dos pressupostos da legítima defesa
A legítima defesa é uma excludente de ilicitude prevista no art. 25 do Código Penal, que exige a presença simultânea de: (i) agressão injusta; (ii) atual ou iminente; e (iii) uso moderado dos meios necessários para repeli-la. Trata-se de uma reação autorizada pelo ordenamento jurídico a um ataque em curso ou prestes a ocorrer.
No caso analisado, a alegação de que a criança praticava bullying não é suficiente, por si só, para caracterizar uma agressão atual ou iminente. O vídeo do evento, amplamente divulgado, revela apenas uma apresentação de dança típica, sem qualquer sinal de hostilidade. Ausente o requisito da atualidade ou iminência, não há legítima defesa possível.
Fernando Capez, ao tratar da matéria, observa que:
“Na legítima defesa o commodus discessus opera de forma diversa do estado de necessidade, no qual não é admitido. No caso da legítima defesa, contudo, em que o agente sofre ou presencia uma agressão injustificável, a solução é diversa. Como se trata de repulsa a agressão, não deve sofrer os mesmos limites. A lei não obriga ninguém a ser covarde, de modo que o sujeito pode optar entre o comodismo da fuga ou permanecer e defender-se de acordo com as exigências legais.”
(CAPEZ, Fernando. Curso de Direito Penal: Parte Geral. 8ª ed., São Paulo: Saraiva, 2005, p. 271)
Contudo, para que a defesa de terceiro seja legítima, é necessário que o agressor atue em reação a uma agressão real, injusta e presente. Nesse sentido, a jurisprudência do TJDFT tem sido firme ao afastar a excludente quando os elementos objetivos da agressão estão ausentes, como no seguinte precedente:
“A legítima defesa de terceiro é uma causa excludente de ilicitude que exige que o agente tenha atuado para repelir agressão injusta, atual ou iminente, contra direito alheio, de forma moderada e proporcional. No caso concreto, as provas indicam que o réu excedeu os limites da necessidade de defesa, praticando agressão desproporcional em relação ao suposto ataque, afastando a aplicação da legítima defesa de terceiros.”
(TJDFT, Apelação Criminal 0708122-68.2023.8.07.0006, Rel. Des.ª Leila Arlanch, DJe 18/12/2024)
A mera menção a episódios anteriores de bullying pode ensejar medidas pedagógicas, psicológicas ou mesmo jurídicas, como comunicação ao Conselho Tutelar ou à escola. No entanto, não legitima, sob nenhum aspecto, o uso da força física contra uma criança. A conduta não foi uma reação proporcional nem moderada: tratou-se de um ato doloso e desproporcional.
2. O segundo agressor e a ilicitude do desforço físico
Logo após a agressão cometida por Douglas, outro pai subiu ao palco e o empurrou. Muitos defenderam essa atitude como “justa indignação” ou “reação moral”. Do ponto de vista jurídico, no entanto, a agressão posterior não configura legítima defesa. Isso porque a reação não visa repelir uma agressão atual ou iminente, mas punir um ato já consumado.
O Direito Penal brasileiro não admite vingança privada. O chamado “desforço físico”, quando desconectado de perigo atual, é punível. Ainda que haja relevante valor moral (art. 65, III, “c”, CP), a excludente de ilicitude não se aplica. A análise deve ser objetiva: não havia agressão em curso quando a segunda violência ocorreu.
3. A conduta de Douglas: lesão corporal qualificada contra criança
A agressão praticada por Douglas configura o crime de lesão corporal dolosa (art. 129, caput, CP), com agravante genérica prevista no art. 61, II, “h”, pela condição da vítima (menor de 14 anos). Ainda que o empurrão não tenha causado ferimentos aparentes, o simples uso da força contra pessoa vulnerável é suficiente para caracterizar a infração penal.
4. Inaplicabilidade da Lei Henry Borel (Lei nº 14.344/2022)
A Lei Henry Borel foi criada para proteger crianças vítimas de violência no contexto doméstico ou familiar. Conforme o art. 2º, I, da norma:
“Considera-se violência doméstica e familiar aquela praticada no âmbito do domicílio ou da residência da criança e do adolescente, compreendida como o espaço de convívio permanente de pessoas, com ou sem vínculo familiar.”
No caso concreto, não há relação familiar ou de convivência entre o agressor e a vítima. Tampouco existe vínculo institucional entre Douglas e a escola. Trata-se, portanto, de lesão corporal comum, agravada pela idade da vítima, e não de violência doméstica.
A jurisprudência do TJDFT confirma esse entendimento:
“Tratando-se de crime de lesão corporal contra criança, praticada em tese por professora na escola, ou seja, fora do contexto de violência doméstica e familiar, resta afastada a competência da nova Vara de Violência Doméstica e Familiar contra a Criança e o Adolescente, cabendo a competência para processar o feito ao Juizado Especial Criminal, por se tratar de infração penal de menor potencial ofensivo.”
(TJDFT, Conflito de Jurisdição 0750097-54.2024.8.07.0000, Rel. Des. Esdras Neves, DJe 17/02/2025)
Dessa forma, ainda que a vítima seja criança, a ausência de vínculo de convivência com o agressor impede a aplicação da Lei Henry Borel. Trata-se de crime comum, cuja análise deve ocorrer sob a ótica do Código Penal, com as agravantes cabíveis.
Considerações finais
O episódio revela o risco de se flexibilizar, por clamor social ou emoção, os rigorosos critérios da legítima defesa e da aplicação das leis penais protetivas. Permitir a violência física como resposta subjetiva a episódios de bullying — muitas vezes mal compreendidos — equivale a institucionalizar a barbárie e enfraquecer o papel do Estado na tutela de direitos fundamentais.
A função do Direito Penal é pedagógica, mas também protetiva. E a proteção das crianças não se faz com retaliação, mas com a imposição da ordem legal. Legítima defesa é exceção, não regra. Vingança não é Justiça.
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Autores
Ricardo Rodolfo Rios Bezerra
Sócio-fundador do Vieira Rios Advogados. Pós-graduado em Direito Penal, Processo Penal e em Anticorrupção e Compliance pelo IDP. Mestrando como aluno especial na UnB.
Iasmin Barros
Advogada associada no Vieira Rios Advogados. Atua nas áreas de Direito Penal e de Família. Graduada pelo CEUB.